terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A Descoberta do PI

A descoberta teórica do PI

Quem pela primeira vez provou rigorosamente a existência do PI?
Bem, essa pergunta talvez nunca possa ser respondida. Que eu saiba, a mais antiga referência que temos de uma demonstração da existência do PI fala de Hippokrates de Chios, c. 430 AC. Trata-se de uma nota de Simplicius, filósofo grego que viveu quase mil anos depois de Hippokrates. Simplicius, no seu Comentário sobre o livro Physis, de Aristóteles, menciona que Eudemos na sua História da Geometria ( escrita c. 330 AC e, hoje, há muitos séculos totalmente perdida ) diz que Hippokrates demonstrou que a razão entre as áreas de círculos é igual à razão entre os quadrados dos respectivos diâmetros.

Por outro lado, o mais antigo documento ainda existente e que traz demonstração da existência do PI é o livro Elementos de Euclides, escrito em c. 300 AC. Na proposição 2 do Livro XII dos Elementos, Euclides enuncia e prova que círculos estão um para o outro assim como os quadrados de seus diâmetros, que é o resultado atribuído acima a Hippokrates. Ademais, na proposição 18 desse Livro XII, Euclides enuncia e prova que esferas estão uma para a outra assim como a razão tríplice de seus diâmetros.

Euclides encerrou o Livro XII de seus Elementos sem tratar da questão da área da esfera. ( Coube a Archimedes c. 250 AC mostrar que a razão entre as áreas de esferas é igual à razão entre os quadrados de seus diâmetros ). Mas o mais curioso é que em nenhum dos treze livros dos Elementos Euclides fala no PI da circunferência.

Coube a Archimedes a tarefa de ir mais longe do que Euclides demonstrando a existência dos PI's que esse não abordou e estabelecendo resultados que permitem facilmente relacionar os quatro tipos de PI: o PI das circunferências, o PI de áreas de círculos, o PI de áreas de esferas e o PI de volumes de esferas.
Para levar a cabo esse Projeto PI, Archimedes precisou completar o conhecimento exposto nos Elementos de Euclides, descobrindo e demonstrando os seguintes três teoremas:


* a área de cada círculo é igual a de um triângulo reto cujos catetos valem o raio e a circunferência do círculo
( Archimedes: Sobre a Medida do Círculo, proposição 1 )

* a área de cada esfera é igual a quatro vezes a área de seu círculo máximo
( Archimedes: Sobre a Esfera e o Cilindro, Livro I, proposição 33 )

* a razão entre o volume da esfera e o do cilindro que a circunscreve é 2:3
( em verdade, Archimedes in Sobre a Esfera e o Cilindro, Livro I, proposição 35, trabalha com um cilindro maior, de mesma altura e mesmo eixo que o cilindro circunscrevendo a esfera, MAS com o dobro do diâmetro; essa proposição 35 relaciona o volume da esfera, o volume do tal cilindro maior e o volume do cone inscrito no cilindro maior:
VOL ( esfera ) + VOL ( cone ) = 1/2 VOL ( cil maior )
Ora, no Livro XII, prop. 10, Euclides provou que VOL ( cone ) = 1/3 VOL ( cil maior ), de modo que a relação acima mostra que:
VOL ( esfera ) = 1/2 VOL ( cil maior ) - 1/3 VOL ( cil maior ) = 1/6 VOL ( cil maior ) = 2/3 VOL ( cil circunscrito );
Archimedes acabou realmente usando a razão 2:3 e, aliás, sentia-se tão orgulhoso desse resultado que pediu que fosse gravada uma figura do mesmo em sua lápide )



Bem, mas voltemos a um pouco antes do Projeto PI de Archimedes. E' bastante conhecido que Euclides foi matemático pouco original e que seu livro Elementos corresponde mais a uma compilação de resultados já conhecidos e a uma terceira geração de stoicheia ( = elementos ), ie de uma terceira geração de organizações axiomáticas dos conhecimentos básicos da geometria elementar grega. Isso nos leva a indagar quem teriam sido os reais autores das proposições 2 e 18 de seu livro XII. Partindo do fato que Euclides baseou a demonstração dessas duas proposições no Método da Exaustão, T. L. Heath ( in The Thirteen Books of Euclid's Elements ) concluiu que as mesmas remontam, no mínimo, a Eudoxos c. 370 AC, o qual é tido como o primeiro grande matemático a desenvolver o Método da Exaustão. E' importante, contudo, que não esqueçamos que essas demonstrações podem ser anteriores a Eudoxos, pois esse método foi criado duas gerações antes dele, por Antiphon e Bryson em c. 430 AC.
Muitas pessoas acham que precisamos ter o valor do PI para calcular circunferência de círculos. Um exemplo clássico mostrando que isso NAO e' verdade e' o cálculo da circunferência da Terra por Erathostenes c. 250 AC. Ele mediu um arco de meridiano terrestre de 5000 estádios e, usando um instrumento de forma semi-esférica ( chamado skaphe ), verificou que esse arco de meridiano era proporcional a um arco de meridiano da skaphe, o qual media 1/50 do meridiano da esfera desse instrumento. Consequentemente, concluiu que o meridiano terrestre e' 50*5000 = 250000 estádios. Ou seja, em lugar nenhum precisou saber o valor do PI!

Esse exemplo, e outros que poderiamos mencionar, mostram que é bastante surpreendente que a quase totalidade das pessoas ache que PI foi descoberto ao se relacionar circunferências com diâmetros dos respectivos círculos. Embora a definição usual do PI baseie-se na constância da razão circunferência : diâmetro, muito provavelmente não foi essa a origem do PI. Com efeito, é difícil imaginarmos situações práticas reais onde, numa civilização incipiente, alguém tenha precisado calcular a circunferência de um círculo de diâmetro conhecido, ou vice-versa. Muito mais naturais sao problemas requerendo achar a área de um campo circular em termos do diâmetro ou mesmo em termos da circunferência. Em verdade, devia-se até questionar se a descoberta do PI realmente ocorreu no contexto de círculos, e não no de esferas.

Essa inquietação nao é só nossa. O famoso historiador matemático Abraham Seidenberg gastou muitos anos de sua vida vasculhando museus e lendo trabalhos de antropologia, em busca dos mais antigos indícios de envolvimento humano com círculos, esferas e o PI. O resultado desses estudos foi resumido nos seus artigos The ritual origin of the circle and square, Archiv. Hist. Exact Sc. 25, (1981), e principalmente em On the volume of a sphere, Archiv. Hist. Exact Sc. 39, (1988). Sua conclusão foi que o cálculo do volume da esfera em termos de seu diâmetro remontaria a antes de 2 000AC, sendo anterior a matemática das grandes antigas civilizações mesopotâmica, indiana, chinesa e egípcia. O historiador matemático B. van der Waerden identifica essa origem com o que chamo de Tradição Origem da Matemática e a localiza no Vale do Danúbio c. 4 000 AC. Segundo Seidenberg, nessa tradição também se teria reconhecido a igualdade da constante de proporcionalidade relacionando circunferência com diâmetro e área de círculo com quadrado do raio; ou seja, já nessa tradição, possivelmente lá por 3000 a 4000AC, se teria reconhecido que o "PI da circunferência" é igual ao "PI da área do círculo". Também é interessante observar que Seidenberg concluiu que a descoberta dessa igualdade usou métodos infinitesimais, ao estilo de Cavalieri.

mais antigo doc com PI E' preciso que fique bem claro que o que o trabalho de Seidenberg achou na noite dos tempos, em bem remota antiguidade, foram apenas indícios indiretos de envolvimento com PI. Os mais antigos documentos concretos que temos e que tratam explícitamente de PI são tabletas mesopotâmicas de c. 2 000 AC, como a mostrada ao lado. Examinando a figura desenhada, fica fácil ver que a mesma corresponde a adotar a aproximação grosseira PI = 3, que é a mais comum das aproximações para PI que encontramos nos documentos mesopotâmicos.

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